"Olhe que não, olhe que não". O debate entre Soares e Cunhal foi há 50 anos

6 de novembro de 1975. A RTP transmitia o programa "Responder ao País" numa emissão especial de debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, líderes políticos que encabeçavam visões diferentes para o país, quando se temia que o combate político pudesse desembocar numa guerra civil. Ficou para a história expressão do líder comunista em resposta ao oponente socialista e as marcas de um tempo em que ainda era costume fumar em estúdio.

Andreia Martins - RTP /
Foto: RTP

Mais de ano e meio após a Revolução de Abril, muito estava por decidir e determinar no Portugal pós-25 de Abril. Com o VI Governo Provisório no poder há poucas semanas e com uma Assembleia Constituinte a elaborar os alicerces do regime político que então nascia, o debate histórico da televisão portuguesa ocorre num momento de grande tensão, inclusive com receios de um confronto armado.

Com três horas, 40 minutos e 41 segundos, foi o mais longo debate da história e também o primeiro a ser transmitido pela televisão portuguesa, moderado pelos jornalistas Joaquim Letria e José Carlos Megre. Decidia-se que rumo dar ao país depois do Verão Quente.

No dia do debate entre Cunhal e Soares há registo de confrontos entre agricultores e trabalhadores agrícolas em Santarém que resultam em dois mortos e 22 feridos. Dois dias antes do confronto entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, o secretário de Estado da Informação, José Luís Ferreira e Cunha - acusado de ter pertencido ao Centro de Documentação Internacional, uma estrutura que considerada como uma “Super-PIDE” – é impedido de entrar no Ministério e a PSP é chamada a intervir.

A respeito das divisões dentro das Forças Armadas, Álvaro Cunhal reconhecia uma “situação difícil” e Mário Soares alertava para o perigo com o roubo de armas e a emergência de milícias. 

Os dois líderes veem o processo revolucionário de prismas diferentes e com visões muito críticas do adversário: Mário Soares acusa o PCP de querer “transformar o país numa ditadura”, acusação a que Cunhal responde com a mítica frase: “Olhe que não, olhe que não”. 

 "O PS é um partido de esquerda, quer instaurar em Portugal uma sociedade socialista, uma sociedade sem classes, mas em liberdade, respeitando os direitos do homem, através da democracia e do consenso maioritário. E o PCP deu provas, durante estes meses, de que quer transformar este país numa ditadura", afirmou Mário Soares.

Por sua vez, o secretário-geral do Partido Comunista acusa o PS de procurar “um regime de democracia burguesa” em “aliança” com a direita, nomeadamente com o PPD então liderado por Francisco Sá Carneiro. 

"O PS quer liberdades, mas socialismo é que não quer. [...] Nós queremos um Portugal democrático, e é em amplas liberdades democráticas que temos de realizar as reformas sociais, políticas e económicas que abram caminho para o socialismo", afirmou Álvaro Cunhal. 

Mário Soares defendia que os três maiores partidos “desde o princípio associados ao processo iniciado com o 25 de Abril” se mantenham ligados num projeto comum com o objetivo de instaurar a democracia. 

Nem sempre os dois líderes tinham estado de costas voltadas. Escassos dias após a revolução, na manifestação do 1º de Maio de 1974, Mário Soares reconhecia o papel do PCP na luta contra a ditadura. 

“Álvaro Cunhal é o líder de um partido que foi incontestavelmente o partido que teve mais vítimas do fascismo. Nós, socialistas, que também nos honramos de ter as nossas vítimas, não nos envergonhamos de o dizer. Pelo contrário, proclamamos. E é para essas vítimas, algumas das quais eu tive a honra de defender, que eu me volto saudando o Partido Comunista Português”, afirmou Mário Soares ao lado de Álvaro Cunhal.

Ainda antes, a 30 de abril de 1974, o secretário-geral do PS, recém-chegado do exílio após o 25 de Abril, vai receber Álvaro Cunhal ao Aeroporto da Portela. O secretário-geral do PCP, a viver na clandestinidade, é recebido com um abraço de Soares.
Novembro quente

Mas os dois líderes estavam agora muito longe dessa realidade. O debate de novembro de 1975 acontece num momento de tensão acrescida, meses depois de um outro debate bem menos conhecido, em julho de 1975, organizado pela televisão francesa, já depois do “Comício da Fonte Luminosa”, a 19 de junho, em que Mário Soares exige a demissão de Vasco Gonçalves. 

Grande parte do público português teve acesso a este primeiro frente a frente apenas através da imprensa. Um impacto muito diferente do segundo confronto, transmitido pela RTP, e que terá sido acompanhado por milhões de portugueses. 

Os jornalistas, de cigarro na mão, pouco intervieram após as questões iniciais e a discussão acesa entre os dois dirigentes praticamente apagou a sua presença nos Estúdios da RTP no Lumiar. O debate terminou já depois das 1h00 do dia seguinte. 

Neste debate estiveram em confronto dois modelos de sociedade. Ficam patentes as diferenças, por exemplo, no balanço que fazem da Reforma Agrária. Álvaro Cunhal enaltece uma medida que está a transformar uma “agricultura atrasada, rudimentar, de miséria, de desemprego” numa nova agricultura, com a produção a aumentar “consideravelmente”. Por sua vez, Mário Soares diz-se “partidário” da Reforma Agrária, mas sublinha os receios de “desorganizar a produção” e que as expropriações “quase nunca foram feitas por trabalhadores”. 

Outro dos “pontos quentes” do debate é a própria comunicação social. Mário Soares acusa o PCP de se “infiltrar” em vários órgãos e de procurar “esmagar todas as outras correntes de opinião e fazer uma verdadeira manipulação de informação”, sobretudo a imprensa estatal, enfatizando o caso do Diário de Notícias, que diz estar “muito pior do que o Avante”. Álvaro Cunhal responde que são os jornalistas quem deve decidir e que a orientação destes meios deve ser orientada pela “luta dos trabalhadores”. 

Meses antes, tinha sido o caso República a colocar um ponto final no sonho de uma esquerda unida com PS e PCP no Governo. A luta pelo controlo deste jornal entre socialistas e comunistas ditou o abandono por parte do PS do IV Governo Provisório. 

O debate fez parar o país e marca a história da televisão e do Portugal contemporâneo, mas o clima de discórdia e conflito não se fica pelo confronto e adensa-se. Logo no dia seguinte, a 7 de novembro, são destruídos os emissores da Rádio Renascença. Dias depois, a 12 de novembro, dá-se uma manifestação de forças de esquerda que impede os deputados da Assembleia Constituinte de saírem do Parlamento durante dois dias. Na semana seguinte, o Governo entra em greve, alegando falta de condições para exercer o mandato das eleições. 

Segue-se depois o 25 de Novembro, com setores de esquerda radical a tentarem um golpe de Estado que acabaria frustrado e que marcaria o fim do Processo Revolucionário em Curso (PREC). 
Tópicos
PUB